2010-12-11

Nietzsche sobre Sócrates

«Sócrates era plebe. Sabe-se, mesmo ainda hoje se pode ver, que feio era. (...) Os antropólogos entre os criminalistas dizem-nos que o criminoso típico é feio: monstrum in fronte, monstrum in animo

«Não só o excesso e a anarquia confessados dos instintos são um indício de décadence em Sócrates: também o são a superafectação do lógico e aquela maldade de raquítico que o caracteriza.»

«Em todo o lugar onde a autoridade continua a fazer parte do bom costume, e o que se dá não são "razões", mas sim ordens, o dialético é uma espécie de palhaço: as pessoas riem-se dele, não o tomam a sério. - Sócrates foi o palhaço que se fez tomar a sério: o que é que aconteceu realmente aqui? -»

«O dialético deixa ao seu adversário a tarefa de provar que não é um idiota: enfurece os outros, ao mesmo tempo priva-os da capacidade de se defenderem. O dialético torna impotente o intelecto do seu adversário. - Como?, é a dialética em Sócrates apenas uma forma de vingança

Do "Crepúsculo dos Ídolos"

Uma Casa na Escarraria

2010-10-12

Confissão

«Posso-lhe confessar uma coisa. Apesar de ter tido uma educação anglicana, pessoalmente dou menos valor a deus do que a uma casca de limão, porque com uma casca eu faço um chá e com deus é preciso implorar um milagre, arrastar os joelhos durante quilómetros, rezar noite sobre noite, sufocar o pensamento racional para acreditar nas mais incoerentes patranhas - e mesmo assim, depois de tudo disso, a recompensa mais provável é a água transformar-se em vinho e não em chá.» 

Real Byron

2010-10-11

Filmes de Terror - uma Análise


Pietro e Laturdi conversavam num centro comercial.

- A parte mais difícil para um argumentista de filmes de fantasmas deve ser o final. O final… A conclusão. Não, o final. Aquilo que constitui mais ou menos o fim do filme, o desfecho, o final. O final… Irra que não estou a conseguir pensar!

- É o jingle do Pingo-Doce! Em loop! Tapa os ouvidos!

Pietro tentou tapá-los mas (como se arrependeu disto!) estava a segurar dois funis de cozinha, um em cada mão, e cravou-os com tanta força nas orelhas que já não os conseguiu arrancar. Com os funis a amplificar o som a hipótese de sobrevivência que sobrava era correr para a saída, e assim fez Pietro, acelerando pelos corredores como uma partícula no Cerne. Infelizmente o centro estava cheio e, apesar da sua inspiradora capacidade técnica no slalom e corrida de obstáculos - com que contornou e saltou, extraordinária exibição de talento e graça, um número primo de pessoas ocupadas a tapar as orelhas - o jingle foi mais rápido a inchar-lhe o cérebro.

Ao sentir a pressão crescente no crâneo Pietro percebeu que não estaria vivo muito tempo, mas Pietro era um ser invulgar: experimentando aquela paixão pela glória que só os grandes homens possuem nos momentos capitais, decidiu partir num derradeiro acto de altruísmo atirando-se para dentro de uma Barreiros Faria. A explosão foi tão potente que estilhaçou duas prateleiras inteiras de perfumes. Pietro teve uma morte com as entranhas expostas, mas ninguém (a Deus ofende quem diga o contrário!) lhe sentiu o cheiro. O incidente ficaria para sempre lembrado nas memórias olfactivas como uma mistura enlevada da nova colecção de Tommy Hilfiger flutuando num pasto adocicado por Montblanc sob a sombra fresca de Jean Cartier, fantasiando com espirais altas de Lacoste e Boucheron e finalmente adormecendo sobre gotinhas de orvalho Cacherel.

Foi lançado, para honrar o seu nome, a linha de perfumes “Pietro” como marca branca da Jerónimo Martins. E gostaria muito de dizer que foi um sucesso, mas não posso. Não posso por duas razões: primeiro porque não foi, segundo porque é mais relevante saber porque Laturdi, amigo de Pietro, se escondeu numa casa-de-banho do centro comercial e lá esperou até à hora de encerramento.

Podemos continuar assim? Obrigado. Laturdi esperou até os corredores ficarem escuros e desertos porque muitos dos filmes de terror que tinha visto ensinavam que na morte os espíritos ficavam presos à terra se a vida não lhes tivesse chegado para concluir alguma coisa importante. Como Laturdi considerava importante a conversa que estavam a ter antes da tragédia pensou, com acerto, que Pietro ainda permanecesse ali algum tempo e dirigiu-se ao corredor onde horas atrás, ambos com pulsações, conversavam.

O corredor parecia maior agora, mal iluminado a princípio e terminando numa total escuridão. Os reflexos vagos das montras eram sinistros e deprimentes. As lojas fechadas calcavam Laturdi enquanto símbolos de holocausto, fim e morte absoluta, e algo se apagava nele também. Seria bem melhor, imaginava, se ao menos existissem ali zombies como nos filmes de Romero, ou vampiros, ou demónios, que seriam um símbolo de movimento (Laturdi mapeava tudo em símbolos) contra a paisagem, essa sim, inerte, cruel e fria como o vácuo universal. Sim, como as lojas, ao pouco também a sua esperança se fechava. Começou a pensar na infância – tinha sido sempre assim com o seu coração: vibrante e corajoso, sem dúvida, mas também engaiolado num monte de costelas. Sofria de fobia a tudo o que servisse para fechar outra coisa: ovos, caixas de ovos, camiões de caixa fechada com caixas de ovos, tupperwares, lojas encerradas, quartos, casas, o centro da Terra. Ter-se mudado para um vão de escada da Almirante Reis – pensou – fora decerto a melhor decisão da sua vida!

Tal como vagueava o espírito de Laturdi por caixas e vãos de escada, também vagueava o espírito de Pietro – que era agora quanto lhe sobrava – pelo corredor escuro. O amigo ainda não o tinha sentido, e Pietro pensava se seria correcto quebrar a barreira, que devia ser intransponível, que separa o mundo dos vivos do dos mortos. Mas como se lembrou do que queria demonstrar ao início, e o acho igualmente importante, dirigiu-se a Laturdi e cumprimentou-o:

- Olá.

- És tu Pietro? Eu sabia que te ia encontrar por aqui. Fervilha sempre alguma verdade sob a ficção! Parece que a alma é invisível, hem?

- Sim, uma chatice. Mas pelo menos posso fazer-me ouvir.

- Ou arrastar coisas para chamar a atenção.

- Sim, sim… Não me lembres disso. Bom, vamos ao que interessa. Falávamos, creio, da dificuldade do argumentista de filmes de terror para encontrar um final decente.

- Era isso. Imaginei que ficasses para concluir.

- Pois bem, eis o que eu penso: que o terror é o mais complicado de todos os géneros de cinema. Vejamos que hipóteses tem o argumentista.

- Hipóteses.

- Primeiro, a de explicar os fenómenos que causam o terror. Por definição esses fenómenos são inexplicáveis, e explicar o inexplicável nunca resulta. Se se explicar o vampirismo, por exemplo, enquanto doença, o vampiro passa da criatura extraordinária do imaginário popular para o adoentado digno de pena do quotidiano. Continua com superpoderes, está bem, mas é apenas um doente com superpoderes. A magia desfaz-se assim que se percebe o truque. E com os zombies a mesma coisa. São mortos que se levantam para perseguir os vivos e isso não se explica com vírus ou radiações extraterrestres. Ainda que tenham sido feitas tentativas muito boas como no caso do “28 Dias Depois”, em que os zombies não são mortos e sim “infectados”. Apenas infectados raivosos e descontrolados: parece muito bem, não é? Mas falha na mesma. E porquê? Porque nós, o público, vamos questionar qualquer explicação que nos seja dada e encontrar defeitos. Se é apenas um vírus que descontrola as pessoas, porque é que os infectados não matam outros infectados? Como é que em vez disso andam em matilha atrás dos sãos? Fazem-se estas perguntas e o terror fica coxo, frágil. Reduzido à demência de quem o escreveu, já não nos ataca, não nos fere, torna-se apenas um susto, inofensivo como um sonho mau. E qualquer explicação que inventem será também inexplicável – metam-se por aí e metem-se num labirinto de Dédalo, às escuras e pejado de cocó espalhado no chão. Isso elimina qualquer hipótese de um fim decente.

- Deixa-me acrescentar que todo o público racional é imbecil. O terror é irracional: há que desfrutar dele irracionalmente. Querem pensar? Vão ler Kierkgaard, vão integrar funções a la Riemann, vão fazer cubos mágicos de 16x16x16 e deixem os filmes de terror para quem se assusta!

- Espera. Não quero abordar o público, o público que se lixe para já. Vejamos a outra hipótese do argumentista: não explicar os fenómenos. Os filmes da série Ju-On e The Grudge de Takashi Shimizu, por exemplo, funcionam sem necessidade de explicações profundas. Sempre que uma pessoa tem uma morte revoltante, de profundo ódio e rancor, nasce uma maldição – que vai depois atrás de outras pessoas. Revela-se primeiro por sinais sinistros, depois pela aparição do fantasma de uma criança e por fim por um demónio de longos cabelos negros que se desloca de uma forma não-natural e assassina. O pior são aqueles que fazem a pergunta: “mas porque é que de uma morte injusta há-de nascer um demónio? Porque é que se vinga em gente que não está relacionada – será um caso de miopia sobrenatural? Não há nada melhor para fazer no outro mundo?”.

- Olha, esses que se fod…

- Espera, espera. Acho que o que se tira daqui é que a questão fundamental não é a quantidade de explicações, e sim a maneira como se quebra a resistência psicológica do público. E agora sim, quero falar do público. Será que temos mesmo de o espetar no Berço de Judas para o sintonizar com o terror? É difícil achar o espectador ideal de filmes deste tipo. Se for muito sensível, a experiência ser-lhe-á tão aterrorizante que em vez de achar piada vai ficar sem vontade de ver outro filme do género, e se for muito racional tudo o que vai encontrar são incoerências, explicações mal dadas ou falta delas, patetices, e também não vai querer repetir. O espectador ideal será então um ser equilibrado entre a sensibilidade e a razão, hiper-sensível e ao mesmo tempo capaz de controlar as emoções sem as sufocar. Ou seja, uma raridade.

- O espectador ideal que se lixe também.

- Gostava ainda de falar dos finais, porque é nos finais que muitas vezes se revela o monstro, a aparição, o mal, sendo o argumentista obrigado a concluir. Mas as melhores conclusões são as que deixam o terror em aberto, não é verdade? Um Fim que não é fim: um sinal, subtil ou não, de que a ameça persiste, quem sabe tomando o próprio espectador como o próximo alvo. Ou ainda aquele brutal e irónico final da “Noite dos Mortos-Vivos”, em que o único sobrevivente é confundido com um zombie pela manhã e baleado na cabeça pelos vivos. Ou a crueldade própria de uma tragédia grega – por exemplo aquele crudelíssimo fim do “Nevoeiro”, de Frank Darabont, em que um pai, dividido entre deixar o filho ser dilacerado pelos monstros ou matá-lo rapidamente, opta pela segunda e logo depois de o matar vê o exército a pôr os monstros em fuga. Eu li o original do Stephen King, “The Myst”, e não tinha este fim, ficava apenas tudo em aberto. Que bela surpresa tive com a adaptação.

- Não estou a perceber onde queres chegar, Pietro, mas já é um bocado tarde e tenho de ir para casa.

- Ah… mas não terminei. Que horas são?

- Bolas, já são sete da manhã! O centro comercial está a abrir!

- Há movimento no Pingo-Doce! Depressa, põe os tampões nos ouvidos!

- Devem ter caído na casa-de-banho! Pouça, está a começar o jingle!

- Corre!

- Não há tempo! Fura-me os tímpanos com qualquer coisa, rápido!

- Não consigo! Esqueces-te que não tenho matéria!

- E se criares um campo magnético?

- Fantasmas não criam campos magnéticos! Mas posso ajudar-te a procurar alguma coisa pontiaguda com o dom que me permite atravessar paredes.

- Minha Nossa Senhora, começou!

O mundo roda e tudo muda sem parar
Mas uma coisa permanece igual
A qualidade e o preço baixo Pingo-Doce
E o nosso amor por Portugal

Às primeiras notas daquela voz homicida Pietro desapareceu para se refugiar no Além. Sozinho e desesperado, Laturdi, num último ímpeto de racionalidade, tentou o suicídio quebrando várias montras com a cabeça – quebrando e quebrando e quebrando, naquela esperança idealista de um estilhaço lhe perfurar uma artéria, sempre sem sucesso. Vindo do alto, de toda a parte, como um martelo de bifes gigante, o refrão desabou impiedoso:

Vem ao Pingo-Doce de Janeiro a Janeiro
O preço é sempre baixo baixa todo o ano inteiro
Tudo aqui é bem melhor, vem de tudo e mais fresquinho
Tudo aqui tem mais sabor, tudo é feito com carinho

Laturdi entrou em coma e 15 segundos depois explodiu. O corredor inteiro ficou alcatifado por entranhas, causando um atraso de duas horas na abertura do centro comercial e um incomportável incómodo para os clientes que já aguardavam numa longa fila. Como represália o seu nome jamais foi lembrado.

2010-10-04

The band-aid

The boy had a little wound, so he put a band-aid on it. It must have been dirty, because the wound started bothering him. He was afraid of removing the band-aid, so the wound got infected, the maggots grew and grew, healthy and fat, and then he was dead. The baby flies said goodbye to the small cadaver and flew away, laughing.

The 70mm mule is born

O Segredo - uma história circular

“Escute Dr. Nói… talvez não compreenda o que lhe vou dizer”



Depois de uma intensa investigação que durou 68 anos e 13 horas, Pao Nói achou a fórmula que terminaria com todas as guerras: uma bactéria artifical e largamente contagiosa composta essencialmente por dopamina e cianeto que, uma vez colocada em acção, daria felicidade – não uma felicidade qualquer, uma felicidade plena e transbordante, daquelas que resistem a uma doença terminal - à maioria dos seres humanos. Para os organismos imunes a bactéria responderia com o cianeto, impedindo com eficácia qualquer estado de infelicidade.

Pao Nói calculou que 9 meses bastariam para a pandemia atingir toda a gente (cálculo que só por si lhe custou outros 9 meses a concluir por causa do agravamento da doença de Alzheimer). Talvez uns 10% fossem imunes, o que faria muitas famílias perderem membros, mas seria tal a abundância de dopamina nos sobreviventes que aproveitariam a cremação dos seus familiares para grelhar frangos e assar castanhas, caso os incinerassem, ou fariam estátuas de areia na praia com os corpos, caso optassem pelo enterro, celebrando a vida a tirar fotografias com o champanhe erguido.

Depois deste pensamento Pao Nói saudou toda a sua equipa de investigação à maneira formal japonesa, isto é, mantendo na face a expressão formal da sua cultura, rígida e grave, de quem está concentrado a desfechar um cagalhão épico entalado desde o tempo dos samurais e tão volumoso como o Bushido, e de seguida grunhindo algo que etroou no espaço como um fortíssimo e decidido “- NH!”. Após todos ficarem exactamente com a mesma expressão, respeitando o protocolo japonês, Nói saiu para a rua em direcção à antiga Agência de Defesa, hoje chamada Ministério da Resolução de Tudo, levando a bactéria num frasquinho.

Eram tempos devastadores, que tinham começado por dar nomes esplêndidos a instituições acreditando que estas, por magia, boa vontade e melhor título, cumpririam integralmente a sua nomenclatura. Assim se começou a escrever o destino, com o optimismo incontornável de grandes letras pregadas em edifícios. Havia a “Fundação da Omnisciência”, o “Instituto Superior de Domínio do Cosmos”, o “Centro Cultural do Pénis Agigantado” e muitos outros. Todas as sociedades civilizadas do planeta eram assim. Todas giravam em torno de um único livro, mais sagrado que todos os textos religiosos e mais fundamental e estruturante do que todas as constituições, chamado “O Segredo”.

“O Segredo” desvendava a lei universal que professa que nada é impossível e que tudo é uma questão de desejo. Se alguém não tem o que quer é porque ou não o deseja da maneira correcta ou deseja, subrepticiamente, que o seu desejo não se cumpra. Em resposta à fé generalizada e ao estado febril de comunhão com o universo, o mundo tinha entrado em colapso. As pessoas tinham deixado de trabalhar para se aperfeiçoar na arte do desejo e ninguém produzia mais do que sonhos. Por fim deixaram mesmo de se mover. Era comum famílias passarem uma vida inteira sentadas no seu apartamento, a desejar, e depois morrerem, apodrecendo no mesmo sítio. A única solução foi lançar aves de rapina sobre as cidades e obrigar as pessoas a ter as janelas sempre abertas.

Cedo se verificou que “O Segredo” era uma coisa muito perigosa, mas era tarde demais: as livrarias, a Internet e a Oprah tinham-no feito alastrar a praticamente todos. E se um conhecedor do “Segredo” desejasse que Israel desaparecesse do mapa? E se alguém pedisse ao universo para rebentar com a Terra? E se alguém quisesse que os bolcheviques vencessem as eleições? Para resolver esse perigo foi criada uma polícia sem fronteiras para vigiar os desejos das pessoas. O seu treino especial em áreas como a fantasia, a ilusão, a esperança e a quimera permitia-lhes saber, pelas subtilezas da expressão do rosto, o desejo que um cidadão estava a ter, para agir depois em conformidade. Todas estas áreas de investigação e descoberta não tiveram um caminho sereno porque, como se verificou em muitos casos, é demasiado fácil confundir uma vontade de holocausto com um esgar de cólica. Como a pena para holocaustos era a lobotomia, não ter diarreia ascendeu à tabela dos dez desejos mais populares, ficando à frente dos tentáculos Hentai, na sexta posição.

A polícia internacional dos desejos não funcionou em pleno. Um dia um Amish teve um sonho e toda a América do Norte regressou ao século XVII, quando ainda não existiam os Estados Unidos e o Canadá, o que veio a causar um enorme embaraço diplomático; outra vez um belga soterrou uma cidade inteira em batatas fritas sem sal, e noutra, graças ao Vaticano, a Terra tornou-se o centro do universo segundo o modelo ptolomaico. Tiveram de se tomar medidas mais drásticas. Começou-se por fazer lobotomias aos doentes mentais, como medida de prevenção. As religiões foram proibidas, a Internet desligada e limitado o acesso aos livros. Como medida de sobrevivência a educação geral, reforçada por uma estupidificação cirúrgica dos media, teve de ser modificada para fabricar robôs, e não espíritos livres, possuidores de apenas meia-dúzia de conceitos inóquos. Todas estas medidas foram levadas a sério porque um pequeno descuido, uma ligeira criatividade, um pensamento alternativo, uma ilusão distraída, poderia ser o derradeiro empurrão na humanidade à beira do abismo.

As famílias que morriam dentro de apartamentos não podiam sonhar, pois, com grandes coisas, apenas objectos simples, inóquos e pequenos, como bolas de naftalina e pizzas – no máximo, e com muitos cuidados recomendados, trotinetas. As pizzas serviam para se alimentarem e as bolas de naftalina para disfarçar o cheiro quando uma divisão ficava tão cheia de trotinetas que as aves de rapina não conseguiam chegar aos cadáveres. Todos tinham uma televisão onde podiam ver programas pouco imaginativos sobre naftalina e pizzas durante todo o dia, e uma biblioteca com livros especializados nestes assuntos - para além d’”O Segredo”, obra que se ligou aos leitores como se se tratasse de um órgão do seu corpo, de tal maneira que nenhum governante jamais encontrou forma de a aniquilar sem o risco de uma revolta popular em larga escala. Como acontece aos toxicodependentes, que possuem na droga o único meio de sobrevivência sobre as ruínas do que ela própria arruinou, “O Segredo” acabou por tornar-se para os seres humanos um bem mais essencial do que a água. Havia pelo menos um exemplar em cada casa, e não adiantava deixar de o editar porque as pessoas faziam aparecer novas cópias constantemente através do desejo.

As próprias janelas, como tudo o que lembrasse coisas perigosas, podiam ser letais. Se à noite, ao olhar para as estrelas, alguém desejasse uma delas a Terra terminaria instantaneamente numa bola de fogo; isso precipitou a decisão, decerto radical mas compreensível, de cobrir com colossais mantos negros todas as cidades e cegar as pessoas do campo. Aos tempos bárbaros sucederam-se métodos menos violentos, mais civilizados, como injectar químicos em fetos para que crescessem já com falta de visão e uma diminuição dos outros sentidos, e aquele visionário método de Huxley de retirar oxigénio ao cérebro dos recém-nascidos para que crescessem fiáveis: apáticos, imbecis e totalmente despojados de criatividade.

E quem eram estes que mandavam sobre os demais, decidiam o rumo, protegiam tão arduamente a humanidade da maldição d’”O Segredo”? Uma sociedade secreta existente há muito tempo, tão secreta que surgia na História sob vários nomes, sendo um deles “Bilderberg”. Tinham sido os próprios bilderbergues a lançar o “Segredo” no mercado, de forma a destruir por dentro os governos existentes e criar a tão anunciada Nova Ordem Mundial. É certo que as coisas não corriam na perfeição, com tanto poder ainda espalhado por cabeças incautas – não tinham previsto tantas dificuldades para retirar o livro do mercado - mas com algum engenho e arte um dia as coisas voltariam ao normal, com os bilderbergues a reinarem racional e faraonicamente sobre toda a futura, pacífica e próspera Terra.

Foi neste mundo que Pao Nói, após desenvolver a sua investigação secreta durante décadas (tinha-a começado durante a segunda grande guerra) num complexo subterrâneo de bunkers, emergiu à superfície, atravessou a rua e chamou um taxi. Como não tinha lido “O Segredo” não sabia exactamente como desejar um taxi, e tendo-o desejado da maneira convencional não apareceu nenhum (na verdade apareceu um trenó puxado por huskies siberianos longe dali, no meio de um deserto). Associou tudo aquilo – a ausência de taxis, de pessoas e da própria rua - a mais um delírio provocado pela sua doença degenerativa e assegurando-se que o frasquinho estava bem encaixado no bolso do casaco partiu a pé.

Quatro horas depois entrou no Ministério da Resolução de Tudo, antiga sede da Agência de Defesa do Japão, em Shinjuku, e dirigiu-se aos seguranças:

- NH! Sou o Dr. Pao Nói e preciso de falar com urgência com o Ministro da Defesa e o Primeiro-Ministro!

- Identificação!

Pao mostrou um cartão de identificação claramente expirado há 50 anos e foi expulso do edifício. Mas tinha a seu favor o velho espírito do Bushido: Pao não era um guerreiro que virasse as costas ao problema. Voltado para a entrada, sentou-se e decidiu esperar.

Dois dias depois arrastaram-no até ao gabinete do Ministro da Resolução de Tudo, e o próprio ali estava acompanhado do Primeiro-Ministro e do novo imperador do Japão, todos bilderbergues.

- Investigámos um pouco, Dr. Nói. Sabemos quem é e qual o objecto da sua investigação. – disse o Ministro da Defesa - Peço desculpa, em nome do governo japonês, por não o termos reconhecido mais cedo.

- NH! Concluí a minha investigação e trouxe os resultados. Tenho aqui a bactéria. A operação “paz mundial para sempre” pode começar.

- Sabe… - atalhou o Primeiro-Ministro - …não sou especialista, mas acredito em si. Embora duvide muito que uma bactéria sobreviva a uma carga de cianeto, e que possa multiplicar esse mesmo cianeto quando se replica, não posso duvidar que um cientista do seu nível o tenha conseguido e quero, como líder do governo deste país, dar-lhe os parabéns. Pela dedicação e pela coragem que demonstrou eu mesmo lhe entrego esta chave. Creio que precisa de um apartamento, Dr. Nói.

- Não vai querer viver sem pizzas e bolas de naftalina, Dr. Nói! – acrescentou o Ministro da Defesa com a pretensão de quebrar o gelo.

Pao aceitou a chave com ar grave e inexpressivo, quase solene.

- Obrigado Sr. Primeiro-Ministro. Estarei pronto assim que quiser iniciar a operação “paz mundial para sempre”.

Os outros olharam uns para os outros com um certo constrangimento.

- Escute Dr. Nói… talvez não compreenda o que lhe vou dizer, já que esteve alheado tanto tempo, mas o mundo mudou. A paz já não é necessária. É uma coisa do passado. Hoje, para salvar o mundo, é preciso manter as pessoas com pouca actividade cerebral e bem arrumadas em apartamentos cheios de pizzas e naftalina. Talvez seja essa a melhor definição de paz! Senão estamos perdidos, entende? Não entende porque não sabe as tragédias que aconteceram neste planeta nos últimos anos graças à corrente New Age.

- Sou um cientista, mas também um militar. Não tenho de entender. Se o Sr. Primeiro-Ministro afirma que a paz mundial se consegue metendo os seres humanos em apartamentos cheios de pizzas e naftalina, eu acredito e entrego o resto da minha vida à defesa dessa causa. Darei início imediato à destruição da bactéria.

De repente o imperador, que tinha estado sempre imóvel, desfez a pose de estado para desfechar de surpresa três tiros no peito de Nói à queima-roupa, tendo uma das balas espatifado o frasquinho que estava no casaco. Os ministros saltaram aterrorizados:

- Protejam-se, a bactéria está solta! Porque fez isso, Sua Alteza Imperial?

- Pareceu-me suspeito.

-  Mas ele não fez nada!

- Exactamente. Isso foi muito suspeito. Em caso de dúvida corta-se o problema pela raiz, é essa a nossa política. É ou não é?

O Primeiro-Ministro tinha pensado numa resposta, mas tudo o que conseguiu foi sorrir. O sorriso foi-lhe devolvido pelo imperador. Enrolado como um caracol, no meio do chão, o corpo do Ministro da Defesa, pejado de petéquias, esfriava sem vida. A bactéria funcionava. No entanto, como se verificou depois da pandemia, os cálculos de Nói sobre a mortalidade estavam errados, tendo desaparecido 95% dos seres humanos que restavam após o holocausto d’”O Segredo”. Aos poucos o sistema imunológico humano foi aprendendo a combater a bactéria, conduzindo a mais mortes. Ao fim de uma década restaram apenas 27 pessoas numa ilha que, ignorando a prima causa da extinção, se reuniram junto a uma fogueira para resolver o problema. Tinham achado à deriva um exemplar d’”O Segredo” e acharam que não faria mal tentar:

- Muito bem amigos! – dirigiu-se a todos Paul North, o chefe dos sobreviventes - Todos leram o livro, passemos agora à prática. Precisamos de pensar no modelo ideal de sociedade humana para que os nossos desejos possam dar à Terra, e à nossa espécie, um futuro bem diferente deste! Ouçamos primeiro as sugestões de cada um antes de formularmos o nosso desejo. Quem quer falar?

- Eu! – gritou um deles com o punho cerrado - Chega de exploração dos trabalhadores! Chega de imperialismo burguês! Basta de retrocesso! Sim a uma sociedade sem classes onde todos sejam iguais! Enquanto é tempo! Proponho a utopia marxista-leninista! Contra a reacção! Contra a ditadura das direitas! Contra…

- Pois o meu sonho – interrompeu o do lado – é um sistema orientado ao mérito e não à igualdade. Um sistema em que os mais inteligentes, esforçados e úteis ao bem-comum acumulem privilégios relativamente aos outros.

- Nada disso! – acrescentou mais um - O que é que a humanidade fez até hoje senão destruir? Sigamos antes o Movimento Voluntário para Extinção da Humanidade e desejemos o fim de todos nós, os que restam, voluntariamente.

Durante toda a noite se ouviram sugestões divergentes: “Uma república como a de Platão!”, “Uma ilha como a de Moore!”, “Um Tibete em cada continente todos governados pelo Dalai Lama!”, “Lei do Mercado!”, “Reino da Atlântida, energia limpa do Oricalco!”, “Marvel!”, “Pirâmides, faraós, escravatura!”, “A Terceira Idade de Joaquim de Fiore!”, “Neolítico!”, e por aí fora.

Paul não conseguia um consenso e não queria usar a democracia para uma coisa tão importante. Era preciso que houvesse unanimidade. Teve por fim uma ideia:

- Ouçam, amigos, talvez estejamos a ser demasiado pretenciosos tentando definir, apenas nós, nesta pequena ilha, tanta coisa sobre tantos. Por isso proponho que regressemos ao passado e que, inseridos na história, a mudemos cirurgicamente e que tudo aconteça como é natural a partir daí.

O grupo permaneceu atento, interessado na sugestão.

- E como faremos essa diferença?

- Bom, eu proponho que formemos uma equipa de investigação secreta, com meios ilimitados para investigar uma solução eterna para a paz no mundo. A solução poderá ser qualquer coisa, mesmo que impossível, o que interessa é que funcione. Para não chamarmos a atenção regressaremos a tempos de caos, durante a segunda guerra mundial, por exemplo, e a um país conhecido por promover investigações, digamos o Japão, porque eu sempre quis ir ao Japão. Disfarçaremos as nossas identidades e saberemos falar a língua deles. Estava a pensar em mudar o meu nome para Pao Nói, que me soa a japonês.

Todos concordaram.


(Continua no início)