2010-10-04

O Segredo - uma história circular

“Escute Dr. Nói… talvez não compreenda o que lhe vou dizer”



Depois de uma intensa investigação que durou 68 anos e 13 horas, Pao Nói achou a fórmula que terminaria com todas as guerras: uma bactéria artifical e largamente contagiosa composta essencialmente por dopamina e cianeto que, uma vez colocada em acção, daria felicidade – não uma felicidade qualquer, uma felicidade plena e transbordante, daquelas que resistem a uma doença terminal - à maioria dos seres humanos. Para os organismos imunes a bactéria responderia com o cianeto, impedindo com eficácia qualquer estado de infelicidade.

Pao Nói calculou que 9 meses bastariam para a pandemia atingir toda a gente (cálculo que só por si lhe custou outros 9 meses a concluir por causa do agravamento da doença de Alzheimer). Talvez uns 10% fossem imunes, o que faria muitas famílias perderem membros, mas seria tal a abundância de dopamina nos sobreviventes que aproveitariam a cremação dos seus familiares para grelhar frangos e assar castanhas, caso os incinerassem, ou fariam estátuas de areia na praia com os corpos, caso optassem pelo enterro, celebrando a vida a tirar fotografias com o champanhe erguido.

Depois deste pensamento Pao Nói saudou toda a sua equipa de investigação à maneira formal japonesa, isto é, mantendo na face a expressão formal da sua cultura, rígida e grave, de quem está concentrado a desfechar um cagalhão épico entalado desde o tempo dos samurais e tão volumoso como o Bushido, e de seguida grunhindo algo que etroou no espaço como um fortíssimo e decidido “- NH!”. Após todos ficarem exactamente com a mesma expressão, respeitando o protocolo japonês, Nói saiu para a rua em direcção à antiga Agência de Defesa, hoje chamada Ministério da Resolução de Tudo, levando a bactéria num frasquinho.

Eram tempos devastadores, que tinham começado por dar nomes esplêndidos a instituições acreditando que estas, por magia, boa vontade e melhor título, cumpririam integralmente a sua nomenclatura. Assim se começou a escrever o destino, com o optimismo incontornável de grandes letras pregadas em edifícios. Havia a “Fundação da Omnisciência”, o “Instituto Superior de Domínio do Cosmos”, o “Centro Cultural do Pénis Agigantado” e muitos outros. Todas as sociedades civilizadas do planeta eram assim. Todas giravam em torno de um único livro, mais sagrado que todos os textos religiosos e mais fundamental e estruturante do que todas as constituições, chamado “O Segredo”.

“O Segredo” desvendava a lei universal que professa que nada é impossível e que tudo é uma questão de desejo. Se alguém não tem o que quer é porque ou não o deseja da maneira correcta ou deseja, subrepticiamente, que o seu desejo não se cumpra. Em resposta à fé generalizada e ao estado febril de comunhão com o universo, o mundo tinha entrado em colapso. As pessoas tinham deixado de trabalhar para se aperfeiçoar na arte do desejo e ninguém produzia mais do que sonhos. Por fim deixaram mesmo de se mover. Era comum famílias passarem uma vida inteira sentadas no seu apartamento, a desejar, e depois morrerem, apodrecendo no mesmo sítio. A única solução foi lançar aves de rapina sobre as cidades e obrigar as pessoas a ter as janelas sempre abertas.

Cedo se verificou que “O Segredo” era uma coisa muito perigosa, mas era tarde demais: as livrarias, a Internet e a Oprah tinham-no feito alastrar a praticamente todos. E se um conhecedor do “Segredo” desejasse que Israel desaparecesse do mapa? E se alguém pedisse ao universo para rebentar com a Terra? E se alguém quisesse que os bolcheviques vencessem as eleições? Para resolver esse perigo foi criada uma polícia sem fronteiras para vigiar os desejos das pessoas. O seu treino especial em áreas como a fantasia, a ilusão, a esperança e a quimera permitia-lhes saber, pelas subtilezas da expressão do rosto, o desejo que um cidadão estava a ter, para agir depois em conformidade. Todas estas áreas de investigação e descoberta não tiveram um caminho sereno porque, como se verificou em muitos casos, é demasiado fácil confundir uma vontade de holocausto com um esgar de cólica. Como a pena para holocaustos era a lobotomia, não ter diarreia ascendeu à tabela dos dez desejos mais populares, ficando à frente dos tentáculos Hentai, na sexta posição.

A polícia internacional dos desejos não funcionou em pleno. Um dia um Amish teve um sonho e toda a América do Norte regressou ao século XVII, quando ainda não existiam os Estados Unidos e o Canadá, o que veio a causar um enorme embaraço diplomático; outra vez um belga soterrou uma cidade inteira em batatas fritas sem sal, e noutra, graças ao Vaticano, a Terra tornou-se o centro do universo segundo o modelo ptolomaico. Tiveram de se tomar medidas mais drásticas. Começou-se por fazer lobotomias aos doentes mentais, como medida de prevenção. As religiões foram proibidas, a Internet desligada e limitado o acesso aos livros. Como medida de sobrevivência a educação geral, reforçada por uma estupidificação cirúrgica dos media, teve de ser modificada para fabricar robôs, e não espíritos livres, possuidores de apenas meia-dúzia de conceitos inóquos. Todas estas medidas foram levadas a sério porque um pequeno descuido, uma ligeira criatividade, um pensamento alternativo, uma ilusão distraída, poderia ser o derradeiro empurrão na humanidade à beira do abismo.

As famílias que morriam dentro de apartamentos não podiam sonhar, pois, com grandes coisas, apenas objectos simples, inóquos e pequenos, como bolas de naftalina e pizzas – no máximo, e com muitos cuidados recomendados, trotinetas. As pizzas serviam para se alimentarem e as bolas de naftalina para disfarçar o cheiro quando uma divisão ficava tão cheia de trotinetas que as aves de rapina não conseguiam chegar aos cadáveres. Todos tinham uma televisão onde podiam ver programas pouco imaginativos sobre naftalina e pizzas durante todo o dia, e uma biblioteca com livros especializados nestes assuntos - para além d’”O Segredo”, obra que se ligou aos leitores como se se tratasse de um órgão do seu corpo, de tal maneira que nenhum governante jamais encontrou forma de a aniquilar sem o risco de uma revolta popular em larga escala. Como acontece aos toxicodependentes, que possuem na droga o único meio de sobrevivência sobre as ruínas do que ela própria arruinou, “O Segredo” acabou por tornar-se para os seres humanos um bem mais essencial do que a água. Havia pelo menos um exemplar em cada casa, e não adiantava deixar de o editar porque as pessoas faziam aparecer novas cópias constantemente através do desejo.

As próprias janelas, como tudo o que lembrasse coisas perigosas, podiam ser letais. Se à noite, ao olhar para as estrelas, alguém desejasse uma delas a Terra terminaria instantaneamente numa bola de fogo; isso precipitou a decisão, decerto radical mas compreensível, de cobrir com colossais mantos negros todas as cidades e cegar as pessoas do campo. Aos tempos bárbaros sucederam-se métodos menos violentos, mais civilizados, como injectar químicos em fetos para que crescessem já com falta de visão e uma diminuição dos outros sentidos, e aquele visionário método de Huxley de retirar oxigénio ao cérebro dos recém-nascidos para que crescessem fiáveis: apáticos, imbecis e totalmente despojados de criatividade.

E quem eram estes que mandavam sobre os demais, decidiam o rumo, protegiam tão arduamente a humanidade da maldição d’”O Segredo”? Uma sociedade secreta existente há muito tempo, tão secreta que surgia na História sob vários nomes, sendo um deles “Bilderberg”. Tinham sido os próprios bilderbergues a lançar o “Segredo” no mercado, de forma a destruir por dentro os governos existentes e criar a tão anunciada Nova Ordem Mundial. É certo que as coisas não corriam na perfeição, com tanto poder ainda espalhado por cabeças incautas – não tinham previsto tantas dificuldades para retirar o livro do mercado - mas com algum engenho e arte um dia as coisas voltariam ao normal, com os bilderbergues a reinarem racional e faraonicamente sobre toda a futura, pacífica e próspera Terra.

Foi neste mundo que Pao Nói, após desenvolver a sua investigação secreta durante décadas (tinha-a começado durante a segunda grande guerra) num complexo subterrâneo de bunkers, emergiu à superfície, atravessou a rua e chamou um taxi. Como não tinha lido “O Segredo” não sabia exactamente como desejar um taxi, e tendo-o desejado da maneira convencional não apareceu nenhum (na verdade apareceu um trenó puxado por huskies siberianos longe dali, no meio de um deserto). Associou tudo aquilo – a ausência de taxis, de pessoas e da própria rua - a mais um delírio provocado pela sua doença degenerativa e assegurando-se que o frasquinho estava bem encaixado no bolso do casaco partiu a pé.

Quatro horas depois entrou no Ministério da Resolução de Tudo, antiga sede da Agência de Defesa do Japão, em Shinjuku, e dirigiu-se aos seguranças:

- NH! Sou o Dr. Pao Nói e preciso de falar com urgência com o Ministro da Defesa e o Primeiro-Ministro!

- Identificação!

Pao mostrou um cartão de identificação claramente expirado há 50 anos e foi expulso do edifício. Mas tinha a seu favor o velho espírito do Bushido: Pao não era um guerreiro que virasse as costas ao problema. Voltado para a entrada, sentou-se e decidiu esperar.

Dois dias depois arrastaram-no até ao gabinete do Ministro da Resolução de Tudo, e o próprio ali estava acompanhado do Primeiro-Ministro e do novo imperador do Japão, todos bilderbergues.

- Investigámos um pouco, Dr. Nói. Sabemos quem é e qual o objecto da sua investigação. – disse o Ministro da Defesa - Peço desculpa, em nome do governo japonês, por não o termos reconhecido mais cedo.

- NH! Concluí a minha investigação e trouxe os resultados. Tenho aqui a bactéria. A operação “paz mundial para sempre” pode começar.

- Sabe… - atalhou o Primeiro-Ministro - …não sou especialista, mas acredito em si. Embora duvide muito que uma bactéria sobreviva a uma carga de cianeto, e que possa multiplicar esse mesmo cianeto quando se replica, não posso duvidar que um cientista do seu nível o tenha conseguido e quero, como líder do governo deste país, dar-lhe os parabéns. Pela dedicação e pela coragem que demonstrou eu mesmo lhe entrego esta chave. Creio que precisa de um apartamento, Dr. Nói.

- Não vai querer viver sem pizzas e bolas de naftalina, Dr. Nói! – acrescentou o Ministro da Defesa com a pretensão de quebrar o gelo.

Pao aceitou a chave com ar grave e inexpressivo, quase solene.

- Obrigado Sr. Primeiro-Ministro. Estarei pronto assim que quiser iniciar a operação “paz mundial para sempre”.

Os outros olharam uns para os outros com um certo constrangimento.

- Escute Dr. Nói… talvez não compreenda o que lhe vou dizer, já que esteve alheado tanto tempo, mas o mundo mudou. A paz já não é necessária. É uma coisa do passado. Hoje, para salvar o mundo, é preciso manter as pessoas com pouca actividade cerebral e bem arrumadas em apartamentos cheios de pizzas e naftalina. Talvez seja essa a melhor definição de paz! Senão estamos perdidos, entende? Não entende porque não sabe as tragédias que aconteceram neste planeta nos últimos anos graças à corrente New Age.

- Sou um cientista, mas também um militar. Não tenho de entender. Se o Sr. Primeiro-Ministro afirma que a paz mundial se consegue metendo os seres humanos em apartamentos cheios de pizzas e naftalina, eu acredito e entrego o resto da minha vida à defesa dessa causa. Darei início imediato à destruição da bactéria.

De repente o imperador, que tinha estado sempre imóvel, desfez a pose de estado para desfechar de surpresa três tiros no peito de Nói à queima-roupa, tendo uma das balas espatifado o frasquinho que estava no casaco. Os ministros saltaram aterrorizados:

- Protejam-se, a bactéria está solta! Porque fez isso, Sua Alteza Imperial?

- Pareceu-me suspeito.

-  Mas ele não fez nada!

- Exactamente. Isso foi muito suspeito. Em caso de dúvida corta-se o problema pela raiz, é essa a nossa política. É ou não é?

O Primeiro-Ministro tinha pensado numa resposta, mas tudo o que conseguiu foi sorrir. O sorriso foi-lhe devolvido pelo imperador. Enrolado como um caracol, no meio do chão, o corpo do Ministro da Defesa, pejado de petéquias, esfriava sem vida. A bactéria funcionava. No entanto, como se verificou depois da pandemia, os cálculos de Nói sobre a mortalidade estavam errados, tendo desaparecido 95% dos seres humanos que restavam após o holocausto d’”O Segredo”. Aos poucos o sistema imunológico humano foi aprendendo a combater a bactéria, conduzindo a mais mortes. Ao fim de uma década restaram apenas 27 pessoas numa ilha que, ignorando a prima causa da extinção, se reuniram junto a uma fogueira para resolver o problema. Tinham achado à deriva um exemplar d’”O Segredo” e acharam que não faria mal tentar:

- Muito bem amigos! – dirigiu-se a todos Paul North, o chefe dos sobreviventes - Todos leram o livro, passemos agora à prática. Precisamos de pensar no modelo ideal de sociedade humana para que os nossos desejos possam dar à Terra, e à nossa espécie, um futuro bem diferente deste! Ouçamos primeiro as sugestões de cada um antes de formularmos o nosso desejo. Quem quer falar?

- Eu! – gritou um deles com o punho cerrado - Chega de exploração dos trabalhadores! Chega de imperialismo burguês! Basta de retrocesso! Sim a uma sociedade sem classes onde todos sejam iguais! Enquanto é tempo! Proponho a utopia marxista-leninista! Contra a reacção! Contra a ditadura das direitas! Contra…

- Pois o meu sonho – interrompeu o do lado – é um sistema orientado ao mérito e não à igualdade. Um sistema em que os mais inteligentes, esforçados e úteis ao bem-comum acumulem privilégios relativamente aos outros.

- Nada disso! – acrescentou mais um - O que é que a humanidade fez até hoje senão destruir? Sigamos antes o Movimento Voluntário para Extinção da Humanidade e desejemos o fim de todos nós, os que restam, voluntariamente.

Durante toda a noite se ouviram sugestões divergentes: “Uma república como a de Platão!”, “Uma ilha como a de Moore!”, “Um Tibete em cada continente todos governados pelo Dalai Lama!”, “Lei do Mercado!”, “Reino da Atlântida, energia limpa do Oricalco!”, “Marvel!”, “Pirâmides, faraós, escravatura!”, “A Terceira Idade de Joaquim de Fiore!”, “Neolítico!”, e por aí fora.

Paul não conseguia um consenso e não queria usar a democracia para uma coisa tão importante. Era preciso que houvesse unanimidade. Teve por fim uma ideia:

- Ouçam, amigos, talvez estejamos a ser demasiado pretenciosos tentando definir, apenas nós, nesta pequena ilha, tanta coisa sobre tantos. Por isso proponho que regressemos ao passado e que, inseridos na história, a mudemos cirurgicamente e que tudo aconteça como é natural a partir daí.

O grupo permaneceu atento, interessado na sugestão.

- E como faremos essa diferença?

- Bom, eu proponho que formemos uma equipa de investigação secreta, com meios ilimitados para investigar uma solução eterna para a paz no mundo. A solução poderá ser qualquer coisa, mesmo que impossível, o que interessa é que funcione. Para não chamarmos a atenção regressaremos a tempos de caos, durante a segunda guerra mundial, por exemplo, e a um país conhecido por promover investigações, digamos o Japão, porque eu sempre quis ir ao Japão. Disfarçaremos as nossas identidades e saberemos falar a língua deles. Estava a pensar em mudar o meu nome para Pao Nói, que me soa a japonês.

Todos concordaram.


(Continua no início)

No comments:

Post a Comment