2010-10-11

Filmes de Terror - uma Análise


Pietro e Laturdi conversavam num centro comercial.

- A parte mais difícil para um argumentista de filmes de fantasmas deve ser o final. O final… A conclusão. Não, o final. Aquilo que constitui mais ou menos o fim do filme, o desfecho, o final. O final… Irra que não estou a conseguir pensar!

- É o jingle do Pingo-Doce! Em loop! Tapa os ouvidos!

Pietro tentou tapá-los mas (como se arrependeu disto!) estava a segurar dois funis de cozinha, um em cada mão, e cravou-os com tanta força nas orelhas que já não os conseguiu arrancar. Com os funis a amplificar o som a hipótese de sobrevivência que sobrava era correr para a saída, e assim fez Pietro, acelerando pelos corredores como uma partícula no Cerne. Infelizmente o centro estava cheio e, apesar da sua inspiradora capacidade técnica no slalom e corrida de obstáculos - com que contornou e saltou, extraordinária exibição de talento e graça, um número primo de pessoas ocupadas a tapar as orelhas - o jingle foi mais rápido a inchar-lhe o cérebro.

Ao sentir a pressão crescente no crâneo Pietro percebeu que não estaria vivo muito tempo, mas Pietro era um ser invulgar: experimentando aquela paixão pela glória que só os grandes homens possuem nos momentos capitais, decidiu partir num derradeiro acto de altruísmo atirando-se para dentro de uma Barreiros Faria. A explosão foi tão potente que estilhaçou duas prateleiras inteiras de perfumes. Pietro teve uma morte com as entranhas expostas, mas ninguém (a Deus ofende quem diga o contrário!) lhe sentiu o cheiro. O incidente ficaria para sempre lembrado nas memórias olfactivas como uma mistura enlevada da nova colecção de Tommy Hilfiger flutuando num pasto adocicado por Montblanc sob a sombra fresca de Jean Cartier, fantasiando com espirais altas de Lacoste e Boucheron e finalmente adormecendo sobre gotinhas de orvalho Cacherel.

Foi lançado, para honrar o seu nome, a linha de perfumes “Pietro” como marca branca da Jerónimo Martins. E gostaria muito de dizer que foi um sucesso, mas não posso. Não posso por duas razões: primeiro porque não foi, segundo porque é mais relevante saber porque Laturdi, amigo de Pietro, se escondeu numa casa-de-banho do centro comercial e lá esperou até à hora de encerramento.

Podemos continuar assim? Obrigado. Laturdi esperou até os corredores ficarem escuros e desertos porque muitos dos filmes de terror que tinha visto ensinavam que na morte os espíritos ficavam presos à terra se a vida não lhes tivesse chegado para concluir alguma coisa importante. Como Laturdi considerava importante a conversa que estavam a ter antes da tragédia pensou, com acerto, que Pietro ainda permanecesse ali algum tempo e dirigiu-se ao corredor onde horas atrás, ambos com pulsações, conversavam.

O corredor parecia maior agora, mal iluminado a princípio e terminando numa total escuridão. Os reflexos vagos das montras eram sinistros e deprimentes. As lojas fechadas calcavam Laturdi enquanto símbolos de holocausto, fim e morte absoluta, e algo se apagava nele também. Seria bem melhor, imaginava, se ao menos existissem ali zombies como nos filmes de Romero, ou vampiros, ou demónios, que seriam um símbolo de movimento (Laturdi mapeava tudo em símbolos) contra a paisagem, essa sim, inerte, cruel e fria como o vácuo universal. Sim, como as lojas, ao pouco também a sua esperança se fechava. Começou a pensar na infância – tinha sido sempre assim com o seu coração: vibrante e corajoso, sem dúvida, mas também engaiolado num monte de costelas. Sofria de fobia a tudo o que servisse para fechar outra coisa: ovos, caixas de ovos, camiões de caixa fechada com caixas de ovos, tupperwares, lojas encerradas, quartos, casas, o centro da Terra. Ter-se mudado para um vão de escada da Almirante Reis – pensou – fora decerto a melhor decisão da sua vida!

Tal como vagueava o espírito de Laturdi por caixas e vãos de escada, também vagueava o espírito de Pietro – que era agora quanto lhe sobrava – pelo corredor escuro. O amigo ainda não o tinha sentido, e Pietro pensava se seria correcto quebrar a barreira, que devia ser intransponível, que separa o mundo dos vivos do dos mortos. Mas como se lembrou do que queria demonstrar ao início, e o acho igualmente importante, dirigiu-se a Laturdi e cumprimentou-o:

- Olá.

- És tu Pietro? Eu sabia que te ia encontrar por aqui. Fervilha sempre alguma verdade sob a ficção! Parece que a alma é invisível, hem?

- Sim, uma chatice. Mas pelo menos posso fazer-me ouvir.

- Ou arrastar coisas para chamar a atenção.

- Sim, sim… Não me lembres disso. Bom, vamos ao que interessa. Falávamos, creio, da dificuldade do argumentista de filmes de terror para encontrar um final decente.

- Era isso. Imaginei que ficasses para concluir.

- Pois bem, eis o que eu penso: que o terror é o mais complicado de todos os géneros de cinema. Vejamos que hipóteses tem o argumentista.

- Hipóteses.

- Primeiro, a de explicar os fenómenos que causam o terror. Por definição esses fenómenos são inexplicáveis, e explicar o inexplicável nunca resulta. Se se explicar o vampirismo, por exemplo, enquanto doença, o vampiro passa da criatura extraordinária do imaginário popular para o adoentado digno de pena do quotidiano. Continua com superpoderes, está bem, mas é apenas um doente com superpoderes. A magia desfaz-se assim que se percebe o truque. E com os zombies a mesma coisa. São mortos que se levantam para perseguir os vivos e isso não se explica com vírus ou radiações extraterrestres. Ainda que tenham sido feitas tentativas muito boas como no caso do “28 Dias Depois”, em que os zombies não são mortos e sim “infectados”. Apenas infectados raivosos e descontrolados: parece muito bem, não é? Mas falha na mesma. E porquê? Porque nós, o público, vamos questionar qualquer explicação que nos seja dada e encontrar defeitos. Se é apenas um vírus que descontrola as pessoas, porque é que os infectados não matam outros infectados? Como é que em vez disso andam em matilha atrás dos sãos? Fazem-se estas perguntas e o terror fica coxo, frágil. Reduzido à demência de quem o escreveu, já não nos ataca, não nos fere, torna-se apenas um susto, inofensivo como um sonho mau. E qualquer explicação que inventem será também inexplicável – metam-se por aí e metem-se num labirinto de Dédalo, às escuras e pejado de cocó espalhado no chão. Isso elimina qualquer hipótese de um fim decente.

- Deixa-me acrescentar que todo o público racional é imbecil. O terror é irracional: há que desfrutar dele irracionalmente. Querem pensar? Vão ler Kierkgaard, vão integrar funções a la Riemann, vão fazer cubos mágicos de 16x16x16 e deixem os filmes de terror para quem se assusta!

- Espera. Não quero abordar o público, o público que se lixe para já. Vejamos a outra hipótese do argumentista: não explicar os fenómenos. Os filmes da série Ju-On e The Grudge de Takashi Shimizu, por exemplo, funcionam sem necessidade de explicações profundas. Sempre que uma pessoa tem uma morte revoltante, de profundo ódio e rancor, nasce uma maldição – que vai depois atrás de outras pessoas. Revela-se primeiro por sinais sinistros, depois pela aparição do fantasma de uma criança e por fim por um demónio de longos cabelos negros que se desloca de uma forma não-natural e assassina. O pior são aqueles que fazem a pergunta: “mas porque é que de uma morte injusta há-de nascer um demónio? Porque é que se vinga em gente que não está relacionada – será um caso de miopia sobrenatural? Não há nada melhor para fazer no outro mundo?”.

- Olha, esses que se fod…

- Espera, espera. Acho que o que se tira daqui é que a questão fundamental não é a quantidade de explicações, e sim a maneira como se quebra a resistência psicológica do público. E agora sim, quero falar do público. Será que temos mesmo de o espetar no Berço de Judas para o sintonizar com o terror? É difícil achar o espectador ideal de filmes deste tipo. Se for muito sensível, a experiência ser-lhe-á tão aterrorizante que em vez de achar piada vai ficar sem vontade de ver outro filme do género, e se for muito racional tudo o que vai encontrar são incoerências, explicações mal dadas ou falta delas, patetices, e também não vai querer repetir. O espectador ideal será então um ser equilibrado entre a sensibilidade e a razão, hiper-sensível e ao mesmo tempo capaz de controlar as emoções sem as sufocar. Ou seja, uma raridade.

- O espectador ideal que se lixe também.

- Gostava ainda de falar dos finais, porque é nos finais que muitas vezes se revela o monstro, a aparição, o mal, sendo o argumentista obrigado a concluir. Mas as melhores conclusões são as que deixam o terror em aberto, não é verdade? Um Fim que não é fim: um sinal, subtil ou não, de que a ameça persiste, quem sabe tomando o próprio espectador como o próximo alvo. Ou ainda aquele brutal e irónico final da “Noite dos Mortos-Vivos”, em que o único sobrevivente é confundido com um zombie pela manhã e baleado na cabeça pelos vivos. Ou a crueldade própria de uma tragédia grega – por exemplo aquele crudelíssimo fim do “Nevoeiro”, de Frank Darabont, em que um pai, dividido entre deixar o filho ser dilacerado pelos monstros ou matá-lo rapidamente, opta pela segunda e logo depois de o matar vê o exército a pôr os monstros em fuga. Eu li o original do Stephen King, “The Myst”, e não tinha este fim, ficava apenas tudo em aberto. Que bela surpresa tive com a adaptação.

- Não estou a perceber onde queres chegar, Pietro, mas já é um bocado tarde e tenho de ir para casa.

- Ah… mas não terminei. Que horas são?

- Bolas, já são sete da manhã! O centro comercial está a abrir!

- Há movimento no Pingo-Doce! Depressa, põe os tampões nos ouvidos!

- Devem ter caído na casa-de-banho! Pouça, está a começar o jingle!

- Corre!

- Não há tempo! Fura-me os tímpanos com qualquer coisa, rápido!

- Não consigo! Esqueces-te que não tenho matéria!

- E se criares um campo magnético?

- Fantasmas não criam campos magnéticos! Mas posso ajudar-te a procurar alguma coisa pontiaguda com o dom que me permite atravessar paredes.

- Minha Nossa Senhora, começou!

O mundo roda e tudo muda sem parar
Mas uma coisa permanece igual
A qualidade e o preço baixo Pingo-Doce
E o nosso amor por Portugal

Às primeiras notas daquela voz homicida Pietro desapareceu para se refugiar no Além. Sozinho e desesperado, Laturdi, num último ímpeto de racionalidade, tentou o suicídio quebrando várias montras com a cabeça – quebrando e quebrando e quebrando, naquela esperança idealista de um estilhaço lhe perfurar uma artéria, sempre sem sucesso. Vindo do alto, de toda a parte, como um martelo de bifes gigante, o refrão desabou impiedoso:

Vem ao Pingo-Doce de Janeiro a Janeiro
O preço é sempre baixo baixa todo o ano inteiro
Tudo aqui é bem melhor, vem de tudo e mais fresquinho
Tudo aqui tem mais sabor, tudo é feito com carinho

Laturdi entrou em coma e 15 segundos depois explodiu. O corredor inteiro ficou alcatifado por entranhas, causando um atraso de duas horas na abertura do centro comercial e um incomportável incómodo para os clientes que já aguardavam numa longa fila. Como represália o seu nome jamais foi lembrado.

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